domingo, 27 de maio de 2012
Receita de viver, por Carlinhos Oliveira
"Para viver bem é preciso chegar aos 30 anos com a satisfação de se ter permitido todas as loucuras imagináveis na juventude. E só freqüentar os amigos que suportam os nossos defeitos.
Recomenda-se também uma boa gargalhada, à sós, no momento de se erguer da cama: “Quanta bobagem tenho feito neste mundo! Quá, quá, quá!” A serenidade imperturbável conduz ao fanatismo, e este dá câncer.
Nenhuma preocupação burguesa ou pequeno-burguesa, como por exemplo o medo de perder o emprego ou os bens; nenhuma ambição material, fora as indispensáveis (casa, comida, roupa lavada), ou então que seja gratuita: juntar dinheiro para algum dia comprar um iate ou passar dois anos zanzando pela Europa.
Nunca ferir uma mulher a ponto de fazer-se odiado por ela. O homem inteligente é o que sabe transformar antigos amores em sólidas amizades.
Estar sempre em condições morais de perder tudo e começar tudo outra vez. Interessar-se por tudo, principalmente por aquilo que não nos diz respeito. Amar apenas uma mulher de cada vez. Dizer sempre a verdade, seja qual for e doa a quem doer. Conhecer um por um os nossos defeitos, curar-se dos que não são naturais e cultivar aqueles que mais nos agradam.
Evitar ao máximo o paletó e a gravata, os chatos que falam no ouvido, as mulheres que resolvem tudo pelo telefone, os bêbados que mudam de personalidade quando lúcidos, os vizinhos muito prestativos e todo papo do qual participem mais de três pessoas.
Longa caminhada solitária pelo menos uma vez por semana. Não discutir preços — é melhor ir embora sem comprar. Não guardar ódios a ninguém. Dormir oito horas e, acordando, continuar na cama enquanto puder. Recusar-se terminantemente a beber uísque que não seja escocês legítimo, preferindo a cachaça como alternativa. (Isto vale apenas para quem gosta de beber e bebe freqüentemente, como é o caso do autor dessa receita. Neste caso, a aceitação de qualquer bebida é moralmente inquietante, pois atravessa a fronteira que separa o prazer do vício.)
Ser condescendente com o comportamento sexual dos outros. Tentar compreender cada pessoa, evitando julgá-la. Saber exatamente o momento em que os amigos gostariam de estar sós. Ter caráter bastante para reconhecer as qualidades positivas de um eventual inimigo. Treinar, como quem faz ginástica, para ser sinceramente modesto. Saber contar com irreverência histórias em que faz papel de bobo, e que tenham acontecido realmente.
Viver tão intensamente que possa dizer à morte, quando vier: “Já veio tarde.”"
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Indico, feliz e apaixonada.
Estava bem curiosa. Adoro tema Jung e Freud.
Acabei de assistir o último filme do David Cronenberg. Filmaço! Se chama "Método Perigoso" e está em cartaz
no Brasil e no mundo. Não é o primeiro nas bilheterias. Acredito que seja porque o mundo não está muito a fim de refletir sobre nós mesmos, seres humanos, ou porque nem pensamos sobre isso. Porque posso afirmar que as atuações, roteiro, música, fotografia, cenografia, figurino e direção, são bem caprichados. Então só posso constatar que o tema seja "intelectualizado demais" pra ser recordista de bilheteria. Entendo e não recrimino. Mas não é por isso que deixaria de indicar.
O filme fala de uma relação real sobre dois grandes mestres da psicanálise mundial, Freud e Jung. Nele aborda o fato de que toda e qualquer relação com conflito existente, tem referência com nossa infância reprimida sexualmente ou com nossas relações sexuais. Ou com as relações sexuais ainda não existentes. Mas que o sexo está sempre presente, está. Mesmo que inconscientemente. Mesmo, não.
Assisti o filme sozinha. Como gosto de fazer. O filme me tocou porque fala abertamente de um tema muito difícil de ser lidado: sexo. Por mais liberal ou amante do sexo que sejamos, sempre há uma certa "trava". Ou trava, mesmo. Sem aspas. Se nasce uma menina, a questão é: "não vai namorar antes dos 15". Se nasce um menino é: "já tem quinze anos e ainda é virgem?". A questão sempre é presente. Indepentende da raça e religião. Dois filhos de sexo oposto nunca serão criados da mesma maneira quando o tema é sexo. Não pelas suas personalidades, mas pelo seu sexo. Fato. Os meninos crescem tendo que aprender a "segurar" o gozo e as meninas crescem tendo que reaprender (porque está na natureza do ser vivo) a gozar.
O filme é um romance lindo. Que me tocou muito. O texto final diz: "As vezes as pessoas tem que fazer algo imperdoável.. só pra poder continuar vivendo".
Indico, feliz e apaixonada.
segunda-feira, 19 de março de 2012
Pra que serve uma relação?

"Uma relação tem que servir para tornar a vida dos dois mais fácil.
Vou dar continuidade a esta afirmação porque o assunto é bom, e merece ser desenvolvido.
Algumas pessoas mantém relações para se sentirem integradas na sociedade, para provarem a si mesmas que são capazes de ser amadas, para evitar a solidão, por dinheiro ou por preguiça. Todos fadados à frustração. Uma armadilha.
Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado.
Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo, enquanto você prepara uma omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio, sem que nenhum dos dois se incomode com isso.
Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre, estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada uma pessoa bonita a seu modo.
Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.
Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem o corpo um do outro, quando o cobertor cair.
Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro no médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.
Obs.: Olha, tenho a sorte de ter uma relação assim."
Drauzio Varela
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
Baleia ou Sereia

A academia Runner criou um outdoor que perguntava o seguinte:
"Neste verão, você... quer ser sereia ou baleia?";
Uma mulher enviou a sua resposta, distribuindo o seguinte e-mail por aí:
“ Ontem, vi um outdoor da Runner, com a foto de uma moça escultural de biquíni e a frase: “Neste verão, qual você quer ser?”
Sereia ou Baleia?
Respondo:
Baleias estão sempre cercadas de amigos.
Baleias têm vida sexual ativa, engravidam e têm filhotinhos fofos. Baleias amamentam.
Baleias nadam por aí, cortando os mares e conhecendo lugares legais como as banquisas de gelo da Antártida e os recifes de coral da Polinésia.
Baleias têm amigos golfinhos. Baleias comem camarão à beça.
Baleias esguicham água e brincam muito.
Baleias cantam muito bem e têm até CDs gravados. Baleias são enormes e quase não têm predadores naturais.
Baleias são bem resolvidas, lindas e amadas.
Sereias não existem. Se existissem viveriam em crise existencial: “Sou um peixe ou um ser humano?”
Sereias não têm filhos, pois matam os homens que se encantam com sua beleza. São lindas, porém tristes e sempre solitárias...
Runner, querida, prefiro ser baleia!"
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
Palavras sábias de um sábio artista.
"Andando há mais de 40 anos por este país, catando dinheiro para levar pra casa, eu aprendi a acreditar. Acreditar na terra, no homem, na chuva, na benção, na semente, no fruto, no coração, na mente… na inteligência. Aprendi com o meu povo que quando uma coisa está muito séria, o melhor que se faz é brincar com ela.
E naquelas tardes terríveis, sozinho num quarto de hotel esperando a hora do show, eu comecei a desenhar o país dos meus sonhos. Um país onde cada lavrador tenha um par de bois para puxar seu arado e que de tarde, ao voltar para casa, encontre um par de filhos o esperando e à noite, quando for dormir, tenha um par de pernas para amar. No país dos meus sonhos, todo pobre vai comer, todo hospital terá remédios, todo aluno terá colégio, todo professor ganhará um salário decente e todo policial apenas prenderá os bandidos, em vez de os ajudar a matar e a roubar. No país dos meus sonhos todo cego vai ver, todo surdo vai ouvir e todo mudo vai ver e ouvir coisas tão lindas que nem será preciso dizer nada. No país dos meus sonhos a integração do homem com a natureza será tanta que eu chego a imaginar uma árvore dizendo a um homem: “Você me tratou tão bem, foi tão legal comigo, que eu gostaria de me transformar na mesa da sua casa, nas cadeiras onde sua família sentará, no berço do seu filho”.
No país dos meus sonhos o homem branco, afinal, vai descobrir que o coração do negro é do tamanho do seu e o sangue da mesma cor. O país dos meus sonhos um dia será verdade. E ele será tão feliz que nem vai precisar de mim para fazer rir um pouco. Não faz mal. Eu perco o emprego, mas não perco o sonho." (Chico Anysio)
E naquelas tardes terríveis, sozinho num quarto de hotel esperando a hora do show, eu comecei a desenhar o país dos meus sonhos. Um país onde cada lavrador tenha um par de bois para puxar seu arado e que de tarde, ao voltar para casa, encontre um par de filhos o esperando e à noite, quando for dormir, tenha um par de pernas para amar. No país dos meus sonhos, todo pobre vai comer, todo hospital terá remédios, todo aluno terá colégio, todo professor ganhará um salário decente e todo policial apenas prenderá os bandidos, em vez de os ajudar a matar e a roubar. No país dos meus sonhos todo cego vai ver, todo surdo vai ouvir e todo mudo vai ver e ouvir coisas tão lindas que nem será preciso dizer nada. No país dos meus sonhos a integração do homem com a natureza será tanta que eu chego a imaginar uma árvore dizendo a um homem: “Você me tratou tão bem, foi tão legal comigo, que eu gostaria de me transformar na mesa da sua casa, nas cadeiras onde sua família sentará, no berço do seu filho”.
No país dos meus sonhos o homem branco, afinal, vai descobrir que o coração do negro é do tamanho do seu e o sangue da mesma cor. O país dos meus sonhos um dia será verdade. E ele será tão feliz que nem vai precisar de mim para fazer rir um pouco. Não faz mal. Eu perco o emprego, mas não perco o sonho." (Chico Anysio)
domingo, 6 de novembro de 2011
O Palhaço?

Quando soube que Selton Mello estava rodando o longa "O Palhaço", no ano passado ou início desse ano (já não me lembro ao certo) fiquei atenta. Sabia que algo bom viria. Primeiro pelo tema "circo, palhaço brasileiro". Me encanta a magia do palhaço. Segundo pelo Selton. Pela dedicação que ele tem pela profissão. E pelo carinho que ele tem como seu elenco, sabia que o capricho da equipe seria unânime. Foi assim no seu primeiro longa "Feliz Natal". Sabia que não seria diferente nesse. Com a diferença que no primeiro longa, Selton fez um filme escuro, com uma trilha linda (Plínio Profeta), porém amargurada. Contando uma história provável, mas "deprê". Não tão diferente do "O Palhaço", mas diferente.
Deixa eu explicar:
O filme conta a estória de um palhaço triste (Selton), filho de um palhaço (brilhante Paulo José) orgulhoso da arte. Vivem do circo e se apresentam pelo interior do país alegrando cidades e famílias, com uma trupe divertidíssima. A seleção desses atores é algo comparável a Fellini. TODOS estão maravilhosos. Álamo Facó, Cadu Fávero, a divertidíssima Fabiana Karla, Teuda Bara, do Grupo Galpão (aplausos de pé), Ferrugem (Sensacional essa escalação!), Jorge Loredo (Eterno Zé Bonitinho), Moacyr Franco (Deslumbrante delegado corrupto), Tonico Pereira (Ator genial), Emílio Orciolo (Digno de prêmio, esse menino), Eron Cordeiro (Ótimo!)entre outros incríveis atores. Tudo isso em cores lindas e uma fotografia impecável.
A trilha do Plínio Profeta é bárbara. Uma pesquisa linda e emocionante, foi feita. As músicas te levam à sensações extremas. Do choro ao riso. Literalmente. Um deslumbre.
O que me encanta no longa é a forma como foi roteirizado, dirigido, gerado. O filme tem tiradas ótimas, dirigidas com um certo "descaso" (na melhor forma que essa palavra possa significar), que nos aproximam do momento-piada. Eu ria e conseguia visualizar o momento da piada na cena. Pareciam realizadas no set. Entende? Eram momentos leves dentro de uma estória não leve. Assim como é a vida. Ninguém é totalmente feliz, nem totalmente triste. E isso foi passado no filme. Tornando real aquela estória. Poderia ser de qualquer um. Independente da profissão. É a história de qualquer um. Em um momento ela é a minha história.
Mas o que me deixa triste é que o Brasil ainda não se acostumou a valorizar o que é nosso. Infelizmente ainda não. Porque se esse filme fosse Americano, ou até Argentino, estaria no topo das bilheterias. Ainda dá tempo de chegar lá, hein? Fica a dica.
Assista e me conte.
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Nós, atores brasileiros

Dogma do Merda.
Prezados atores e dramaturgos; prezados profissionais do teatro:
Não vamos mais pedir esmola. Este é um relato de como se encontra o teatro carioca em 2011 e não coloco a culpa no governo, na TV nem nos empresários. A culpa, desconfio e lamento, é do próprio “povo do teatro”. E não estou falando da culpa cristã, essa que promete um Salvador e o caminho dos céus, eu me refiro a sua responsabilidade como artista pelos rumos da sua profissão.
Era uma vez um povo que se acostumou a trabalhar de graça, a viver de favor, a ser submisso. Um povo que foi domesticado a receber sempre com muita gratidão e humildade aquele apoio, o prato de comida na noite de estreia, um desconto camarada durante a temporada. Infelizmente, esse povo que trabalha (e muito!), se acostumou a se nivelar por baixo.
Era uma vez um povo crítico, observador, treinado a perceber cores na realidade que escapam aos olhos da maioria de seus irmãos. Esse povo, com antenas conectadas naquilo que parece imperceptível, e capaz de produzir questionamentos sobre nosso jeito de ser e de se comportar, esse povo então batizado como “artista”, é muito preguiçoso.
Era uma vez um monte de gente jovem, com seus vinte e poucos anos, trinta e poucas primaveras de sonhos, utopias e necessidades de transformar o mundo. Essa é a história de um povo criativo, bastante egocêntrico mas muito criativo, que nasceu inspirado a interpretar nossa existência e mostrar para o restante do “povo comum” que nas entrelinhas da vida existe drama, existe fantasia e que o nosso combustível para viver é o conflito.
Gostaria de contar para vocês a história de um povo apaixonado pelo que faz. Que tem dificuldade em enxergar na própria profissão um trabalho, que sobe no palco pela primeira vez cheio de ideologias e discursos prontos, que se sente ofendido e muitas vezes surpreso quando é pago pelo que faz. Pelo que ele faz muito bem.
É a fábula de um povo muito bacana e gentil que não deixa de prestigiar os amigos. De um povo que lota todos os teatros e que mesmo sabendo das dificuldades em se levantar um espetáculo, criou o “convite amigo”. Para que ele próprio, o “povo do teatro”, não reconheça o valor de seu trabalho. Ou para que não enfrente o pior dos pesadelos: uma plateia vazia.
O povo do teatro quer trabalhar a todo custo. Alega que é movido pela paixão. Trabalha não por compulsão ou doença, mas por uma necessidade política muito fundamental do ser humano: a vontade incontrolável de falar. De compartilhar. De perguntar sem a obrigação de responder. Alguns consideram-se mais especiais que os outros e ao invés da generosidade, disseminam vaidade. Outros, por não se sentirem tão importantes assim, por falta de vaidade, desistem no meio do caminho.
Quantos de vocês não conhecem alguém que ficou para trás? Quantos de nós já não pensamos em desistir? Quantos talentos promissores não foram desperdiçados, quantas possibilidades não foram devastadas pela nossa falta de postura e união? Quantas almas criativas não foram enterradas diante da desesperadora e justa necessidade de chegarmos aos 30, 35 anos com um pouquinho de qualidade de vida?
O povo do teatro é um povo muito covarde. Covarde porque ele aceita qualquer coisa, porque ele se acostumou a produzir com o medo de não fechar as portas, de não perder os contatos, de não “se queimar”. No entanto, infelizmente, os maiores sacrificados são os próprios artistas. Mesmo quando alguns poucos são beneficiados com o sonho do patrocínio, descobre-se que aquela empresa que fez o favor de “dar o dinheiro para bancar o seu sonho” vai depositar a parcela tão batalhada… um mês depois da sua estreia!
Os atores, a ALMA de qualquer espetáculo, e que exceto o público são a única presença verdadeiramente indispensável para que o teatro aconteça, são os últimos a receber. Os dramaturgos, os primeiros a trabalhar sem a menor garantia que um dia verão o seu texto encenado. A culpa não é dos produtores. Inclusive, eles trabalharão oras a fio para inscrever seu projeto na lei, para captar alguma grana por fora, para convencer o empresário que aquilo é bom.
Só que estamos caminhando para o colapso. Quando qualquer classe de trabalhadores se sente agredida e desrespeitada, busca-se uma articulação, algum tipo de união e debate, alguma atitude. Os funcionários fazem greve. Assistimos, em poucas semanas, a greve de funcionários da cultura, a greve de professores, a greve de funcionários dos Correios e agora a greve de bancários
E os artistas, como se defendem? Como esse povo que é apaixonado pelo que faz entrará em greve com o amor? Vocês serão capazes de paralisar essa energia movida pela paixão, tão cafona, tão vítima e tão melodramática, para assumir o verdadeiro papel de heróis? Serão capazes de se transformar ao longo da jornada?
Queremos ser heróis trágicos, vítimas massacradas por escolhas infelizes e por uma batalha desigual com os deuses. Nossa maior desmedida não é o engano; nosso erro trágico é passar por cima e fingir que essas são as regras do jogo. Que é melhor jogar calado do que desistir. Já que para cada um que não trabalha de graça, uma centena trabalhará.
Vou apresentar a vocês o “povo da música”. Dizem que eles só entram no processo quando existe dinheiro. Assim como o “povo da técnica”, aquele responsável por operar o som que embala os atores ou a luz que não os deixará no escuro. O povo da música, quando trabalha de graça, exige no mínimo um instrumento para ser tocado. Os atores não. Eles aceitam ensaiar sem espaço adequado, aceitam ensaiar sem os objetos de cena, os atores aceitam não receber. Os atores aceitam. Aceitarão, no futuro, as indicações de alguns diretores despropositados que não sabem o que estão fazendo. Aceitarão o patrocínio que entra com meses de atraso. Aceitarão qualquer trabalho em qualquer constrangedor programa de TV para que possam pagar as suas contas no final do mês. E fazer o seu teatro, graça a Deus.
Os cenógrafos serão obrigados a fazer um cenário que caiba numa mala, os figurinistas terão que operar milagres em algum brechó da cidade, os iluminadores terão que ser inventivos usando velas, lanternas e um abajour e todo aquele montante do patrocínio vai pagar o banner, a assessoria de imprensa e sua estreia se resumirá a uma estética que impera no teatro carioca: palco vazio e um banquinho de madeira. Como é que um espetáculo que recebe 200 mil estreia assim? O dinheiro é destinado a pagar os profissionais. E pagar mal. O orçamento fica apertado e sobra muito pouco para o projeto em si. Nosso teatro se resume a uma mala, com toda a ironia que a palavra carrega.
Quantos artistas anônimos transbordando de talento, mas cheios de falta de sorte ou sem os devidos contatos, não morrerão sem viver o calor de uma temporada cheia?
Povo do teatro! Não vamos aceitar quietos e sermos pagos três meses depois! Aceitar é um verbo antiteatral por princípio. É um verbo que acaba com o conflito. E o que percebemos, angustiados com o povo do teatro, é que temos aceitado tudo com medo, com receio de não trabalhar mais. Não vamos trocar nosso trabalho por um prato de comida nem por um pedaço de pano. Não vamos nos deixar levar pela promessa de pagar nossas contas de janeiro apenas em abril. Ou então, prezado povo do teatro, vamos assumir que somos apaixonados e medíocres.
Por falta de união e por pura preguiça, nos tornamos invejosos e recalcados com quem trabalha na TV. Nos tornamos uma classe desesperada que perdeu a classe, que perdeu a fineza de se colocar de igual pra igual com um patrocinador.
Quando se é jovem, quando não se é ninguém, é muito bom desfrutar da importância de ser “desimportante”. De não levar os discursos tão à sério e enxergar por trás de um manifesto apaixonado e radical, cheio de inconsequências e desmedidas, um suspiro de sinceridade. E carinho, muito carinho, com esse tal “povo do teatro”. Afinal, se nem todos são do teatro, todos nós somos o povo.
Assumir esse desconforto não é uma maneira de dizer que o teatro faliu. Não é um manifesto pessimista. Não é apologia ao “não vale a pena”. É só a história do único povo do mundo que passa fome para alimentar a alma dos outros. Nunca foi tão emblemático gritar “Merda” antes de cada apresentação, mas no pé que estamos, sugiro que o grito seja dado no final, sempre que a plateia estiver vazia.
O povo do teatro enfrenta seu maior desafio. Já que ele não é pago, ficou refém do elogio.
Dona Heliodora é um personagem de ficção criado por Felipe Barenco e este manisfesto não tem alguma relação verídica com qualquer opinião da célebre crítica Barbara Heliodora. Por favor, não reproduza este texto sem os devidos créditos e esclarecimentos.
Assinar:
Postagens (Atom)